JOYCE ATHIÊ o tempo
Foi tudo por acaso. Eliane Souza, diretora da Redes da Maré, uma instituição que trabalha com educação, direitos humanos e redução da violência, me convidou para participar das atividades que eles desenvolvem, e lá eu me deparei com o curso de fotografia. Isso foi em 1999. Lá, a fotografia tinha um foco em direitos humanos, e eu me espantava com essa relação, como o respeito ao fotografado, com o que fotografar e de que forma. Isso me interessou muito. As aulas eram dadas em cima do morro, e eu ia lá com a ajuda de um amigo que empurrava a minha cadeira. Eu me tornei cadeirante aos 22 anos depois de levar um tiro. Quando esse meu amigo desistiu do curso, eu tive que fazer esporte para ter força pra continuar subindo o morro, mas, dessa vez, sozinho. E deu certo. Continuei estudando, fazendo outros cursos. Em 2004, eu me encontrei com João Roberto Ripper, fotógrafo que pensa a fotografia a serviço dos direitos humanos. Ele é minha referência maior e eu acabo bebendo dessa água. Nessa época, ele havia sido convidado a fotografar a Maré, mas resolveu ensinar os moradores a olharem para o lugar que eles habitam. Interessante que isso tudo aconteceu em um momento ímpar do Rio porque havia uma crise entre a imprensa e a favela. A mídia não é bem vista porque ela é nociva, por desconhecimento, por preconceito ou até mesmo por interesses que acabavam reproduzindo estereótipos. E aí, começo a desconstruir, pela fotografia, esse olhar colonizador, a me reconhecer como morador e a valorizar as belezas do lugar onde moro. O que te levou a se adentrar no universo da fotografia, especialmente, a buscar um trabalho humanista por meio de suas fotos?
Além do trabalho de valorização da favela, você toma a fotografia como ferramenta de denúncia?
Não sei se o que faço é denúncia. Em 2013, minha casa foi invadida pelo Bope, e minha câmera foi jogada na privada. Eu estava fora, fotografando com um amigo e, quando cheguei, os moradores me avisaram que estavam quebrando tudo. Além da câmera, eles desconectaram o gás do fogão e fecharam as portas da minha casa. E eu só posso imaginar que foi minha fotografia que causou isso, apesar de que essas ações são rotineiras. Nesta semana mesmo, algumas casas foram invadidas, e a gente tem narrado essas histórias que acontecem por aqui. Em uma conversa com um amigo que é chaveiro, ele me contou que, a cada operação policial, ele tem que trocar de 20 a 30 fechaduras para consertar as portas arrombadas. Quando a minha casa foi invadida, eu fotografei, por instinto, e coloquei na internet, o que teve grande repercussão. Na realidade, com a internet, a gente acaba desconstruindo o que a imprensa fala da favela, revelando, inclusive, a ação da polícia. Hoje, quando uma casa é invadida, os moradores me chamam pra fotografar, porque essas coisas precisam ser mostradas por alguém, já que a mídia não mostra.
Mas essa não é uma forma de denúncia por meio da fotografia?
Eu prefiro pensar na palavra resistência, porque quem faz essas coisas está acima de ser punido, como o governador, os parlamentares, por exemplo. O policial é um capitão do mato que faz o ato, mas ele não pode ser responsabilizado sozinho. Por isso que é uma questão de resistência. Porque esses policiais saíram daqui, são moradores. Claro que eles cometem seus erros, são cruéis e desumanos muitas vezes. Mas acusá-los sem pensar no contexto geral não faz sentido. Quando o Estado começou com as ações de pacificação do morro, eu estava em crise com a fotografia porque não queria ser eu mais um a explorar a favela. Mas a Eliane Souza, da Redes da Maré, disse que a favela precisava de mim. E isso foi no primeiro dia da ocupação. De lá para cá, eu ando com a máquina na mão por todos os lados, transito entre todas as facções, porque eu consigo diminuir a violência com a fotografia.
Que favela você encontrou depois que começou a olhar para ela com uma atenção mais sensível para fotografá-la?
Eu não fotografo violência armada. Nas minhas fotos, eu acabo tentando mostrar a favela que não é mostrada pela mídia. Falo da beleza, da sensibilidade, dos trabalhadores. Vou criando outras narrativas, como fez o Cartola quando falou que o cenário da Mangueira é uma beleza. Eu não tenho o dom para escrever, mas faço isso com a fotografia. Retrato a alegria, a infância e as relações de amor com a Maré. Eu sou apaixonado pela favela. Para mim, é o melhor lugar para se morar. Eu sou mimado pela favela. Eu cuido dela e ela cuida de mim. Na realidade, a favela carrega um instinto de coletivo, de comunidade, de resistência e sobrevivência, e a gente acaba sendo uma grande família.
Mas como você lida com as contradições da favela, como o tráfico, por exemplo?
Fotografar o jovem no tráfico é como contar a história do meio ao final do filme. Eu prefiro contar o que não é contado, como, por exemplo, os direitos que foram negados aos moradores, desde a infância. É importante olhar para o antes, para o que vem antes da formação do tráfico. Ninguém nasce doutor ou traficante. Em que momento, então, essa virada acontece, em que um vai para a escola e o outro para o tráfico? Na hora de fotografar, é sobre isso que quero intervir.
Qual é o alcance dessas imagens que são produzidas pelas escolas populares de fotografia, como é o caso da Escola Popular de Comunicação e Crítica, onde você estudou e deu aulas?
A mídia não tem interesse em mostrar. A publicidade não tem, os jornais não tem, e isso não é novidade. Claro que é importante se infiltrar nesses lugares e de uma forma diferenciada da forma como é feita hoje. Mas tem algo mais importante aí. Eu, por exemplo, fotografo e boto no Facebok. E quando os moradores do morro veem uma foto minha, eles acham que as fotos são deles. Eles se apropriam delas e compartilham. Tomam a foto para eles. E esse é o grande impacto que eu quero com o meu trabalho. Por isso, é importante continuar, porque, mesmo que haja resistência, a gente acaba se afetando e, de alguma forma, afetando também a própria mídia, mesmo que isso ainda seja pequeno. As narrativas que nascem na favela são diferentes porque elas são mais próximas e mais reais. Com o barateameno das máquinas fotográficas e dos celulares, acabamos confrontando a mídia quando temos acesso a esses equipamentos que hoje todo mundo tem. A mídia não quer mudar a pauta dela, não quer falar de outra forma. Mas a gente vai e fala, nem que seja na internet. E, às vezes, o que postamos ganha uma proporção tão grande que a própria mídia acaba fazendo uso das imagens e das narrativas que criamos. Esse é um movimento muito novo e a gente só vai dar conta dele daqui alguns anos.
Carioca formado pela escola de fotógrafos populares do Observatório de Favelas, Bira Carvalho já participou de exposições coletivas no Brasil e no mundo, e suas imagens integram diversas publicações e sites de notícias. Convidado do Festival Internacional de Fotografia, o FIF, ele vai debater sobre mídia e favela. Nesta conversa, Bira compartilhou suas reflexões sobre o tema.
Bira Carvalho
Fotógrafo
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