domingo, novembro 08, 2015

Os jogos de escrita e de leitura Ana Maria Elisa Ribeiro Escritora e professora

Não sou uma escritora de fofices. E não é de propósito que isso tenha me ocorrido. A minha voz lírica é agressiva”


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“A ficção é um jogo. ‘Se não sabe jogar, não desce pro play’. Não é assim? E, infelizmente, as pessoas têm pouco molejo com o texto”


Autora de cinco de livros de poesia, entre eles “Xadrez”, lançado neste ano, ela comenta a experiência com o gênero e com outros, como a crônica e o conto. Convidada para participar hoje do Fórum das Letras, em Ouro Preto, a escritora trata ainda dos desafios impostos à ficção no presente e questiona a maneira como o ensino de literatura é exercido nas escolas.
 
Como funciona a escrita de poesia para você, tendo em vista a sua relação com outros gêneros, como a crônica e o conto?

A poesia é o primeiro gênero deles. O mais próximo, o mais intervalar, o mais sensual também. É claro que estou falando da minha experiência de escrita. Mas eu gosto tanto de escrever que me arvoro em toda prática que isso puder me dar. Escrevo, com prazeres igualmente intensos, uma tese de doutorado e um poema de amor. É tudo escrever, aqui para mim. A crônica veio depois, como um exercício mais longo, mais disciplinar. E persiste. Escrevo no “Digestivo Cultural” desde 2003, o que gerou meus dois livros de prosa. São mais leves, menos comprometidos, acho. Na poesia eu me sinto mais política, mais firme. Mas já me disseram – e eu concordo – que há muito da poeta na cronista e vice-versa. Gosto muito disso. Já o conto curto é uma experiência velha que só está se transformando em livro agora. Tive um blog até bem conhecido, em 2003, e ele foi também um exercício de ficção interessante para mim. 
A poesia é coisa distraída em um falso sentido. É que meu texto parece solto, leve, arejado. Mas poesia vem com boa dose de cálculo. É, para mim, uma espécie de encaixe. A exigência disso, em outros gêneros, me parece bem menor.“Xadrez”, o seu mais recente livro, traz um poema com um verso que sublinha: “poesia é coisa distraída”. 

No novo título, a ideia de jogo é enfatizada, talvez como metáfora para a vida. Há pouco tempo, você também publicou uma crônica (“Momento Ideal & Conciliação”) que frisa como a trajetória adulta nos exige tecer estratégias. Ao seu ver, os poemas que surgem agora refletem experiências cotidianas que se situam muitas vezes nos movimentos de avanço e recuo, típicos das partidas de jogo e das conciliações?
Avançar e recuar, ser estrategista, pensar no depois com base no hoje e no ontem. A epígrafe do meu “Xadrez” é do historiador Michel de Certeau, segundo quem “a memória dos lances antigos é essencial a toda partida de xadrez”. Então, entendo meu livro de poemas como uma ideia sobre a memória e sobre a vida, incluindo o futuro. Eu acredito muito no que a gente faz para alcançar algo. Não é exato e nem sempre é frutífero, mas precisa ser mirado, medido, estudado. Mesmo quando dá errado, precisa ser repensado. Não sou uma pessoa do aleatório. Talvez sofra um pouco, mas acho que essa poesia trata disso, no amor, na maternidade, na família, nas paixões. Cada recuo serve para planejar a próxima investida, e não para perder tempo.
Esse é o seu quinto livro de poesia, mas em breve você deve lançar também o “Beijo, Boa Sorte”, que reúne alguns minicontos. Quais aspectos esses irão abordar diferentemente dos poemas apresentados em “Xadrez”?
Os contos do “Beijo, Boa Sorte” não são novos. Eles são do blog de 2003. A novidade do livro é ter feito uma seleção mais atual, ter discutido com algumas pessoas que admiro, ter relido com os olhos de hoje. O Carlos Fialho, editor da Jovens Escribas, faz um dos trabalhos mais sensacionais que eu conheço. E é sempre uma alegria fazer livro com ele. É, para mim, um risco trazer essa prosa curta em livro, agora. Mas é também um jogo bom. Acho que as pessoas que conhecem algo da minha poesia vão estranhar meus narradores dos continhos. É tudo bem violento e verossímil, mas também bonito. O que me motiva é sempre gostar de escrever ou brincar com as palavras fazendo-as dizer o que não é muito agradável. Não sou uma escritora de fofices. E não é de propósito que isso tenha me ocorrido. A minha voz lírica é agressiva. E eu a deixo falar. E a distingo de mim.
Em maio deste ano, um dos seus poemas concebido para leitores adultos chegou até os alunos do ensino fundamental de uma escola pública, gerando uma grande confusão. No texto, uma mulher, motivada por ciúmes, planeja uma vingança contra um homem e a questão da violência tratada ali teria sido o estopim da polêmica. Amanhã você participará justamente da mesa “Os Poetas e o Politicamente Correto”, no Fórum das Letras, em Ouro Preto. Como você percebe atualmente esse caso?
A ficção é um jogo. “Se não sabe jogar, não desce pro play”. Não é assim? E, infelizmente, as pessoas têm pouco molejo com o texto ficcional. Culpa de quem? Da escola? Das famílias? Dos editores? Do governo federal? Do capitalismo? Da Simone de Beauvoir? Não sei. O que aconteceu comigo em maio foi surreal, mas, ao mesmo tempo, foi compreensível. Estamos em um país que confunde escola com igreja. E igreja da pior e mais hipócrita espécie. O poema é um poema. E o que ficou mostrado é que um poema pode se tornar uma arma de coibir, censurar e perseguir pessoas. O texto é violento, sim, tanto quanto qualquer Jornal da Alterosa, no fim da tarde. E extremamente irônico. É só olhar para o título dele: “Ciuminho básico”. Brinquei muito com ele em muitos eventos, ao longo dos anos, e as reações eram sempre divertidas. Se ele tivesse caído nas mãos das crianças via web ou se eu fosse macho, nada teria acontecido. Eu não teria sido tratada como ré e como vadia pela imprensa incompetente e pelos haters de internet, completamente emburrecidos; as professoras não teriam sido covardemente exoneradas; os pais não teriam ficado chocadíssimos e sem dormir; os honrados políticos não teriam perdido tempo com isso etc.
Mas o poema caiu nas mãos das crianças via escola.
E escola não é lugar de tratar do contemporâneo e nem do literário e nem de quase nada, exceção para ecologia, sexualidade em bonecos de plástico e coleta seletiva. Basicamente é o seguinte: a sociedade cobra da escola que ela seja atual, viva, digital, ativa, interessante para as gerações de espertos nativos digitais, isto é, ela é considerada desinteressante, antiquada, careta. Mas quando se apresenta um presente muito nítido para ela e nela, é um escarcéu. Machado de Assis é quadrado, é difícil, é desinteressante, é penoso, é um crime contra crianças de 11 anos. Mas qualquer autor vivo também é. Pessoas pretensamente esclarecidas mencionavam ignorâncias como: “por que essa autora idiota”, no caso eu, “e não um Carlos Drummond ou uma Adélia Prado?”. Eu me contorcia de nojo. Drummond tem um livro inteiro, ao menos, de poemas eróticos, cheios de palavrões. Adélia tem poemas eróticos espalhados por sua obra. É muita ignorância literária. É o famoso falar do que não sabe e nunca soube. Não há educação escolar possível. Não sei por que ainda não acabaram com a disciplina de Literatura nas escolas! Melhor não dar ideia, né? Mas vamos lá. Vou seguir escrevendo sobre o que é ignorado e naturalizado todos os dias: violência, especialmente contra a mulher e as crianças, paixão, ciúme, traição etc. Lembrando que sou mãe, professora e uma respeitável mulher branca, casada, hétero de 40 anos. Melhor que isso só sendo homem. Olha, a mesa no Fórum das Letras deve passar por alguns destes pontos, mas também outros, como os concursos literários que já vêm com uma regra assim: os contos devem prezar pela moral e os bons costumes. Tem condição?

CARLOS ANDREI SIQUARA o tempo

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