quarta-feira, maio 04, 2011

Cegueira seletiva’ enxerga produtos e esconde necessidades


"‘Cegueira seletiva’ enxerga produtos
 e esconde necessidades"
Adriano De Lavor*
Quando a pesquisa do Ipea aponta que parte dos brasileiros não se considera usuária do Sistema Único de Saúde, a primeira suspeita é que há algo de errado na divulgação do sistema para a população. Mas será mesmo esta a única causa do desconhecimento? Na discussão que propõe sobre invisibilidade social, o cientista político Luiz Eduardo Soares coloca que indiferença e preconceito anulam a pessoa por meios opostos: enquanto a primeira ignora a sua presença, o segundo “corresponde a uma hipervisibilidade, que ilumina uma imagem artificial e pré-construída, obscurecendo a individualidade da pessoa, mantida na penumbra”.

Difícil não reconhecer o próprio SUS nesta condição. Mesmo o cidadão que utiliza a saúde suplementar para cuidar de sua família é usuário do SUS. Basta observar o preparo de um inocente churrasco de domingo: a carne terá sido vistoriada pela Vigilância Sanitária, o desinfetante para higienizar o ambiente, também. Assim como o protetor solar usado pela criança, o perfume comprado para esposa e o analgésico que se acredita amenizar a ressaca. Um simples almoço cotidiano, para ser saudável, não prescinde de normas, serviços e profissionais do SUS.

Seja para o rico, seja para o pobre, é o SUS quem financia todas estas ações. Mesmo reconhecendo que condições políticas e econômicas também contribuem para a formação de sua imagem, o SUS é vítima de preconceito, apresentado pela mídia comercial como cenário exclusivo de iniquidades, destino irrevogável de cidadãos de segunda classe que não podem consumir bens de saúde. O reflexo desta imagem estereotipada é a exclusão de suas qualidades da cena discursiva midiática.

Desaparece dos olhos da audiência, por exemplo, o que há de mais caro em sua essência, que é a participação popular. Raríssimas são as pautas ou coberturas jornalísticas que abordam o poder constitutivo do controle social e suas instâncias. Ausente nas conferências e negligente com os conselhos de saúde, a grande mídia segue utilizando seu discurso denunciatório sobre a ineficácia do que é público na saúde para, repetidamente, ignorar agentes políticos e condenar à invisibilidade tudo aquilo que concorre com a esfera dos negócios, sempre bem iluminada pelas embalagens e pesquisas de produto. Enquanto isso, o discurso desqualifica o que ainda está por construir e que carece da ampla mobilização social para que se cumpra como direito de todos e dever do Estado.

De um lado, a hipervisibilidade de suas limitações; de outro, a negligência em relação às boas práticas que oferece. Observar o que se noticia revela um hiato entre o que se diz sobre o sistema e o que ele realmente é. Nesse contexto, falar sobre o SUS implica supervalorizar filas apinhadas de sofrimentos, instalações carentes de reforma e profissionais ausentes de seus postos; reforçar a ideia de que tudo aquilo é coisa de pobre e despesa inútil para o contribuinte. Ao mesmo tempo, as narrativas demonstram indiferença em relação aos avanços do sistema, ignorando a oferta gratuita de procedimentos de alta complexidade que salvam vidas ou o conhecimento produzido em instituições de pesquisa, por exemplo.
Convém esclarecer que não há intenção, nesta rápida análise, de duvidar das carências ou justificar incorreções em qualquer dos serviços; nem demonizar o papel da mídia, como se fosse a exclusiva culpada por essa situação de desinformação, que também reflete as disputas na esfera política e econômica; ou, ainda, subestimar o poder de reflexão do povo brasileiro, que não é mero receptor de notícias. O que se tenta compreender é como se forjou uma imagem midiática tão sólida de ineficiência pública que faz com que aquilo que existe, comprovadamente funciona e está à disposição da população seja reduzido a uma derrotada políticapara os pobres.
Conquista da mobilização do povo brasileiro no processo de redemocratização e fruto de um movimento que vislumbrou um novo projeto para o país, mais justo e igualitário, o Sistema Único de Saúde universalizou o direito à saúde no Brasil, antes restrito aos que tinham a sorte de ter uma carteira de trabalho assinada. Mas o quadro que pintam sobre ele nos meios de comunicação de grande consumo não utiliza, de seus arquivos, outras imagens que não sejam as da ineficácia e a da ineficiência. A seleção daquilo que estampa as manchetes joga para fora das páginas e dos comentários o que não interessa que seja visto.
Dentro desta estratégia de mostrar e esconder fatos, motivos e versões, a partir do uso de estigmas e negligências, deduz-se que não é o Sistema Único de Saúde que é invisível; o modo que a sociedade o enxerga é de tal modo desviado, que ele somente se torna visível quando alvo das câmeras de televisão — portadoras de uma espécie de cegueira seletiva que valoriza apenas as iniciativas privadas, mais afeitas ao espetáculo sensorial dos meios e conexões que constroem o cenário da mídia atual.
Neste sentido, é a própria saúde que se torna invisível, ofuscada pelos holofotes especializados em iluminar artigos para o consumo. No tempo das vitrines on line e on time, os produtos se tornam mais visíveis que as necessidades. n





*Adriano De Lavor é jornalista da Radis e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Informação, Comunicação e Saúde (PPGICS) no Icict/Fiocruz

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