terça-feira, maio 03, 2011

Julian Jaynes e a arqueologia da consciência


Julian Jaynes e a arqueologia da consciência


João de Fernandes Teixeira
Embora pouco conhecido no Brasil, Julian Jaynes (1920-1997) foi um dos mais originais filósofos da mente do século XX. Nascido nos arredores de Boston foi também um grande professor universitário, tendo lecionado na Universidade de Princeton por longo tempo. Infelizmente, Jaynes não viveu muito. O alcoolismo corroeu sua saúde, o que o levou a falecer prematuramente. Uma morte triste e inaceitável para uma sociedade puritana como a dos Estados Unidos.
Sua obra principal, The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, publicada em 1976, tornou-se, na época, muito popular nos meios acadêmicos americanos. Posteriormente, tornou-se uma espécie de leitura cult, por exibir um conhecimento profundo dos textos das antigas civilizações, o que demonstrava uma extraordinária erudição do autor.
Nesse livro, Jaynes apresenta uma hipótese inusitada sobre a origem da consciência humana, que aproximava pela primeira vez a Filosofia da Mente da História, do estudo dos textos antigos e da Antropologia. Seus pontos de vista são considerados um pouco fantasiosos, especialmente se examinados da perspectiva da Neurociência contemporânea.
Contudo, Jaynes continua sendo lido e, nos Estados Unidos, há, hoje, uma Julian Jaynes Society, que se dedica ao estudo de sua obra. Ao que parece, sua teoria da consciência, apesar de fantasiosa, ainda é muito sedutora. Ou talvez porque estejamos diante de um daqueles casos nos quais se aplica o provérbio italiano que diz "si non è vero è ben trovato".
A hipótese de Jaynes é que, se numa linguagem não existe a palavra "eu" (e seus pronomes), seus falantes não terão uma mente ou consciência no sentido em que nós a temos. A ausência de uma representação de "eu" na linguagem escrita é indício de que em uma determinada época ou cultura não havia nada parecido com uma "consciência", talvez nem mesmo em sua tradição oral.
Houve um momento na história da humanidade no qual os seres humanos eram capazes de fazer várias coisas - falar, compreender, perceber e resolver problemas - mas não tinham consciência. Esses seres humanos são chamados por Jaynes de bicamerais, pois em sua época não havia introspecção e quando uma decisão precisava ser tomada, eles ouviam vozes que vinham de fora.
Os seres humanos tinham uma mente cindida em duas; de uma delas vinham essas vozes, que eram os conselhos dos deuses que serviam também para guiar as sociedades. Essas vozes eram o que hoje chamaríamos de alucinações auditivas de um esquizofrênico, mas os textos antigos as registram como algo absolutamente normal na época da mente bicameral. A consciência é um "eu-narrador" internalizado que surge muito tempo depois e é possibilitado pela evolução da linguagem.
A INVESTIGAÇÃO DE Jaynes centra-se na tentativa de descobrir quando ocorreu esse passo evolutivo a partir do qual a consciência - no sentido que lhe atribuímos hoje - tornou-se possível. A data provável do aparecimento da linguagem já serve como uma referência inicial.
Em 3000 a.C., aproximadamente, surgiu a escrita. A análise dos textos antigos para verificar quando eles começaram a representar algo parecido com um "eu" entre seus símbolos possibilita situar o surgimento da consciência com mais precisão. Até a época das primeiras versões escritas da Ilíada, ou seja, em 800 a.C., ainda não aparece nada parecido com um "eu" ou com uma consciência. Éramos marionetes dos deuses. Não havia introspecção.
Mas, alguns séculos depois, por causa da superpopulação e do caos das migrações, a mente bicameral entrou em colapso. É a partir daí que a consciência como experiência de uma primeira pessoa, de uma voz interna, teria surgido. As vozes alucinadas desaparecem e novos fenômenos como anjos e outros mensageiros entre o céu e a terra começam a aparecer, pois não temos mais como receber conselhos diretamente dos deuses. O "eu", o narrador internalizado, se instala definitivamente.
Ao identificar a consciência como fenômeno posterior à linguagem, Jaynes diz que o seu surgimento é um upgrade no software mental dos humanos
Essa etapa é representada na Grécia por Sólon, em 600 a.C.. Ele é o primeiro a falar de uma "mente" ou uma "consciência" no mesmo modo como falamos hoje. Ele é também considerado a primeira pessoa que teria dito "conhece-te a ti mesmo", embora alguns historiadores sustentem que essa sentença tenha nascido no oráculo de Delphos. Mas os resquícios das vozes alucinadas perduram até hoje.Na época moderna, por exemplo, encontramos filósofos como Descartes e Wittgenstein ainda se referindo a vozes que teriam ouvido e que seriam oráculos privilegiados, embora já as situem dentro de nós. Suprimimos as vozes exteriores, mas ainda mantemos, de acordo com nossa tradição cristã, um anjo da guarda que nos "sopra" conhecimento privilegiado. Talvez tão privilegiado quanto o que Descartes e Wittgenstein julgavam ter.
A CONSCIÊNCIA É, então, um fenômeno relativamente recente na história da humanidade, e Jaynes não hesita muito em datá-la de 1400 a.C.. Essa hipótese, como, aliás, todos os passos de sua teoria, são minuciosamente fundamentados nos textos das civilizações antigas, o que torna seu livro muito convincente.
Há muitos que fazem uma espécie de leitura culturalista da teoria da consciência de Jaynes. Mas não acredito que essa seja a sua proposta. Jaynes não é como Rorty, que supõe que mente e consciência sejam uma invenção bíblica e dos filósofos modernos, uma espécie de pseudoconceito que produz equívocos linguísticos. Ao identificar a consciência (o eu-narrador internalizado) como fenômeno posterior à linguagem, Jaynes está nos dizendo que seu aparecimento é algo que se compara a um grande upgrade no software mental dos humanos, ou seja, uma expansão da linguagem que permite a representação de novos operadores. É uma conquista semiótica da raça humana que pouco tem a ver com a expansão de nosso cérebro.
O livro de Jaynes é considerado, até hoje, extremamente belo. É um extraordinário e meticuloso levantamento arqueológico das origens da consciência humana. Se Einstein nos dizia que o que é verdadeiro é belo, talvez estejamos aqui diante de uma teoria cuja verdade tenhamos de aceitar pela sua beleza.
Fonte: Portal Ciência e Vida - http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/

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