domingo, novembro 01, 2015

A escrita de um cineasta


40 anos após o assassinato de Pier Paolo Pasolini, os textos do autor e diretor voltam à cena


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A partir de 1960, Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975) já era um artista conhecido no Brasil, mas sua presença, como já observou a pesquisadora Maria Betânia Amoroso, se deu mais pela circulação dos seus filmes do que por sua literatura, anterior inclusive à produção cinematográfica. Atualmente, no entanto, a escrita do italiano vem sendo revisitada, e um reflexo disso é o lançamento recente do livro “Poemas” (Cosac Naify), organizado por Afonso Berardinelli e Maurício Santana Dias.
Dias, tradutor dos textos reunidos nessa publicação, que chega às livrarias em edição bilíngue, ressalta como grande parte deles são inéditos aqui. Além disso, de acordo com ele, a poesia de Pasolini ainda não havia sido organizada dessa maneira no país.
“Nós achamos importante chamar atenção para o fato de que Pasolini começa a sua trajetória como poeta e só vai se tornar cineasta duas décadas depois. Toda a formação dele é em literatura e em artes plásticas. Essa, então, é uma forma também de recuperar a complexidade do repertório cultural de Pasolini, que acabou um pouco se tornando um estereótipo de alguém ligado à contracultura, e por isso as pessoas não percebem o tipo de relação que ele travava com a tradição”, diz.

Para ele, é justamente o contato de Pasolini com esse legado artístico e literário que o torna alguém bastante crítico às transformações políticas e sociais em curso durante o período em que viveu. “Ele acusava uma espécie de derrocada dessa civilização ‘progressista’, esmagada pela cultura do neocapitalismo. Ele ataca a figura do indivíduo burguês de uma forma frontal e violenta, e critica de maneira contundente a configuração dessa sociedade do consumo que é justamente essa em que vivemos hoje”, acrescenta.
Pasolini foi também autor de peças de teatro e de romances. Dias comenta que em breve alguns desses escritos devem entrar em circulação, porque mais profissionais vêm se dedicando à tradução desses textos.
“É provável que nos próximos dois anos outras obras de Pasolini apareçam por aqui. O professor Alex Calheiros, da UNB, por exemplo, tem trabalhado com as peças dele. O romance ‘Petróleo’, lançado na Itália em 1992, mas inédito no Brasil, está sendo traduzido por colegas meus. Isso sugere um possível retorno de Pasolini ao nosso espaço cultural, o que pode estimular bastante o debate público”, pontua o tradutor.
No caso da antologia publicada há pouco tempo, Dias observa como é interessante perceber, por meio do conjunto de 46 escritos reunidos, as experimentações do autor com a palavra ao longo do tempo.
“A cada livro ele vai lidando de forma mais radical e experimental com a tradição do verso italiano. Pasolini tinha uma relação muito forte com a poesia italiana. Ele recorre o tempo todo aos versos de Dante e o cita em diversos poemas. No entanto, ele vai rompendo com uma escrita informalmente metrificada até fazer uma indistinção entre poesia e prosa nos seus últimos textos”, detalha.
“Nestes se percebe que ele abdica totalmente da forma para buscar uma tentava de comunicação direta com o leitor”, completa.
Ao refletir sobre o impacto dos textos de Pasolini hoje, Dias defende que aspectos centrais da literatura dele continuam bastante pertinentes, e são capazes de dialogar com várias inquietações percebidas em relação ao mundo contemporâneo.
“Ele via de forma muito pessimista o avanço da lógica da sociedade de consumo que ia incorporando tudo num sistema de poder que permeava não só as relações de classe, mas a forma de pensar, pois ele percebe que havia uma espécie de estandardização do pensamento. Ele também já apontava e problematizava a questão do neofascismo, que volta agora com força”, diz.
Cinema que deriva da poesia

Maurício Santana Dias, especialista na obra literária de Pier Paolo Pasolini, cuja morte completará 40 anos nesta segunda, identifica vários pontos de contato entre a poesia de Pier Paolo Pasolini e o cinema que ele desenvolveria após iniciar a sua trajetória na literatura. A possibilidade agora de se ter novo contato com a escrita do artista italiano, por meio da recente antologia “Poemas”, organizada por Dias e pelo crítico literário Alfonso Berardinelli, contribui para se perceber melhor essa relação.

“Ele mesmo chamava a sua produção cinematográfica de cinema de poesia, e não à toa os seus filmes são construídos por associações de imagens. Nessas criações se nota um diálogo direto com seus poemas, a exemplo dos personagens de mitos das civilizações arcaicas”, observa Dias.

Para o tradutor, a leitura dos textos dele amplia a percepção da proposta de Pasolini como cineasta. “É como se no cinema ele tentasse fazer uma espécie de obra de arte total, mas que tivesse um alcance maior, pois ele sabia que a poesia era lida por um número menor de pessoas em comparação com o cinema, que é uma arte popular por excelência”, afirma.

“Pasolini tentava, a partir do cinema, projetar as imagens que ele vinha elaborando em poesia desde os anos 40. É possível perceber nos seus escritos várias fases que tomam a sua obra. Desde uma espécie de utopia quase que ingênua, numa possível renovação cultural, até aquela fase mais pessimista em que fala do genocídio cultural e da mutilação antropológica que estava dando origem a outro tipo de homem”, acrescenta.
Saiba mais
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O livro “Poemas” (Cosac Naify, 320 págs, R$ 59,90) traz uma antologia de poemas concebidos por Pier Paolo Pasolini entre 1942 e 1975. Alguns dos primeiros foram escritos em friulano, dialeto falado em algumas regiões da Itália. A obra reúne 46 escritos do autor e foi organizada pelo tradutor Maurício Santana Dias e pelo crítico literário Alfonso Berardinelli. 

por CARLOS ANDREI SIQUARA, O tempo



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